terça-feira, 16 de março de 2010

MEMÓRIAS

Sines


O “PITO”

António André Pito, de Fornos do Pinhal, concelho de Valpaços, distrito de Vila Real, Trás-os-Montes, Portugal. Era assim que costumava e gostava de se apresentar. Relojoeiro de profissão, dizia ele. Mas eu sempre o conheci a fazer (pequeno) contrabando dum e para o outro lado da raia. Do que melhor me lembra que contrabandeasse eram sapatos, quase sempre por encomenda. E um par deles trazia-os ele sempre nos pés muito bem envoltos em plástico para que não se sujassem, evitando, assim, qualquer reclamação por parte do comprador.

Às vezes, a maior parte das vezes, a mercadoria que “importava” não era da melhor. Concerteza que o enganado também tinha sido ele, que lhe vendiam gato por lebre.

Como aqueles pares de sapatos que um dia trouxe, e um dos quais comprou a “bom preço”, um familiar meu; “sapatinhos da mais pura sola” e “que não foram nada caros” “uma categoria!” - Como ouvi dizer.

Tão bons e genuinos eram que um dia, à lareira, quando se aproximaram mais do calor do lume começaram a derreter como se do melhor e mais puro plástico se tratasse. E pronto. Que se havia de fazer?

Não sei quantos dias demorava o Pito, da raia entre Portugal e Espanha até Fornos do Pinhal. O que sei è que um dia e uma noite era o mínimo que ele sempre perdia em Vilarandelo e disso tenho eu a certeza.

Aqui chegava quase sempre a meio da tarde e, copo atrás de copo, ora fiado ora cravado, e mesmo antes do cair da noite já ele não tinha coragem nem pernas para fazer os sete ou oito quilómetros finais pela estrada nacional, que ele não se metia em atalhos. E não é que se importasse muito com isso, pois onde ficasse recolhido tinha ele sempre garantido. Assim como o mata-bicho do dia seguinte, porque “pelas Almas” haveria sempre alguém que se comovesse e não fizesse caso a menos um copito de água-ardente e a um naco de pão ou até mesmo a uns figuitos secos que, por ali, havia-os e dos bons! A garantia da dormida era a de sempre, um baixo sob uma varanda onde nunca faltavam umas tábuas com uma gabela de palha por cima, a miúdo renovada, e uma ou duas velhas mantas de trapos. Era como se fosse um quarto em hotel de cinco estrelas para os desgraçados como o “Pito”, que tantas vezes, por outras paragens, tinham que dormir ao relento sujeitos a todo o tipo de intempéries naturais. E para cozer, como se costuma dizer, uma bebedeira qualquer coisa estava bem.


Quando o silêncio da noite já tudo envolvia começava o Pito com os habituais monólogos que nunca se soube se era sonhar alto, qualquer forma de sonambulismo ou se, simplesmente, era o efeito dos muitos copos de vinho deitados abaixo durante o dia misturado com o medo da noite e do seu escuro pois que a maior parte das vezes, estes monólogos, constituiam um verdadeiro exame de consciência com confissão e acto de arrependimento, não faltando os bons propósitos para o futuro.
Como, por exemplo, este:

- Oh meu Deus! Perdoai-me o meio litro de vinho que fiquei a deve ao sr. Fulano. E não pago! Não pago! Não pago!

- Não pago!?...

- Oh meu Deus! Perdoai-me. Que eu pago! Eu pago! Eu pago!

- E o que vou ficar a dever amanhã? Eu nao pago?

- Amanhã eu bebo! Eu bebo! Eu Bebo! E depois......(hiato para pensar).. eu pago.

Era certo e sabido que no dia seguinte já não se lembrava de nada, nem da dívida nem do que a Deus prometera na noite anterior.

3 comentários:

José Doutel Coroado disse...

Caro José,
belo personagem para enriquecer a panóplia de memórias a descrever.
abs

Jose Cancelinha disse...

Nao è facil recordar tudo...

José Doutel Coroado disse...

mas são personagens que facilmente, digo eu, podes integrar em outros escritos.
abs